Cinema Sem Imagem
O Manifesto por um texto-gesto
Por Juan Posada
Nosso site recebeu uma mensagem do diretor Juan Posada, irmão de Paula Gaitan, e que está com “A Filha do Caos”, em exibição no Festival do Rio 2022. O teor dessa mensagem sugeria um texto-manifesto de cinema. Para o diretor “O Vertentes seria um espaço extraordinário”. E é lógico que nosso site disse sim. A seguir o texto completo!
Nosso tempo, em que imagens em movimento são produzidas a todo instante, manipuladas, difundidas e celebradas – nosso tempo, em que as imagens são elas mesmas a opinião corrente – é o tempo em que: – o cineasta deve ser aquele que, paradoxalmente, se nega a produzir uma imagem. Negar-se a produzir ou montar uma imagem: o gesto visceral do diretor de cinema – como um gesto auto constituinte. Produzir ou montar uma imagem será, então, sempre, um gesto de pensamento e resistência: a conquista de um espaço de ser. Posturas. O ato inaugural e fundante do cinema – colocar a câmera diante do mundo – como ato existencial. Posição do diretor diante do mundo: de transcendência ética e política. Posicionar a câmera é posicionar-se: assumir a responsabilidade de ser. Posicionar-se. Não qualquer realidade, nem de qualquer modo. Gesto de humanidade: todo enquadramento é um ato entre nós. Todo o resto já estará sempre contaminado por esse ato inaugural. Não se trata já ou ainda de todo o entulho da decupagem, do raccord e verossimilhança: – O enquadramento assume a sua dignidade: abertura originaria de mundo. Levar às últimas consequências o enquadramento: ato cinematográfico puro – posição livre e libertária diante do mundo. Posicionar a câmera. Todo enquadramento é testemunho. Posturas.
Vislumbramos com entusiasmo a distinção entre o plano de composição e o enquadramento, diferença que inspira e encoraja, pois é a abertura originária por onde Dioniso entra para estabelecer seus domínios no cinema, e libertar as potências poéticas do cinema da impostura da técnica. Posturas: o esquartejado. Cinema: mistura de poesia e técnica. Cinema: corpo esquartejado pela técnica. Cinema: assumir esse corpo em pedaços. Corpo de Dioniso. Dioniso se retira e oferta seus despojos. Encenação como representação da paixão de Dioniso, seu eterno vir a ser: morte e renascimento: a própria encenação é devir, negação da imagem do real. Dioniso barroco. Dioniso renascentista. Um cinema Prefigurativo: abertura originaria que torna possível o espaço de jogo cênico para as reencarnações de Dioniso. Cinema Sem Imagem. Faces (Cassavetes); Coriscos (Rocha); Cristos (Pasolini). O cinema já saudou a técnica como sua libertação da representação. Na avareza da técnica, Dioniso em fuga, nos oferece seus despojos. O cinema deve assumir esse corpo que se nega como imagem, mas que nos doa seus despojos. É necessário assumir os despojos – pois aprendemos: o cinema já sempre lida com o esquartejado: trata-se de recolher e fazer as suturas. Essa é a lógica da colheita: o legein: a coleta das partes. A colheita dos sentidos. A apreensão das ideias. O esquartejado e seus despojos. Suturar. Curar. Cuidar.
Muitas vezes trata-se de adoecer um filme. Muitos cineastas adoecem seus filmes. Paradoxalmente é preciso muitas vezes adoecer um filme para que ele conquiste alguma saúde. Cinema Desfigurativo. Já não se trata de assumir o Caos. Já não se trata de colocar-se na origem do plano de composição. Agora se trata de caotizar um plano de composição constituído. Impor ao filme o tempo da convalescência: demoras; rituais; repetições; divagações, recaídas. Cinema Sem Imagem: corpo adoecido, caotizado, catatônico: Salô; Roma Citta Aperta; Limite. Prefiguração e Desfiguração são dois e um mesmo gesto. É preciso já por outra vez e de outro modo, e sempre, negar-se a produzir uma imagem. Cinema como gesto renascentista: Negar a realidade para liberar as suas possibilidades. Por um cinema não realista. É preciso barrar o mundo para reencontrá-lo, transfigurado. “Que faço quanto faço um filme?” Não nos esqueçamos do mandamento: “não criaras e adorarás imagens nem ídolos”. O gesto de um cineasta, temente ao mandamento divino: negar-se a produzir uma imagem. E, talvez, seja a exigência ética do nosso tempo. “Que faço quando faço um filme? – antes, cuido da Palavra”. O sentido do enquadramento como ato fundamental cinematográfico está no milagre da liberdade como poder de começar, no fato de que cada ser humano, ser em si, como postura diante do mundo um novo começo.